Assalto ao comboio pagador

11/01/1964 00:00

Seguidos pelo servente que levava a mala com o dinheiro dos salários dos trabalhadores da CP da Linha do Corgo, o Chefe da Estação da Régua e o Pagador apressavam-se em direcção ao comboio 5423 que se encontrava na linha nº1 da via estreita pronto para partir.
A locomotiva a vapor E214 e o tender, um furgão e duas carruagens de passageiros formavam o 5423. A carruagem de terceira classe seguia atrelada ao furgão e a que seguia em último lugar tinha a particularidade de ser mista, de segunda e primeira, a retrete e o respectivo acesso, um pequeno espaço com menos de um metro quadrado, separavam a carruagem exactamente a meio. Duas portas isolavam o espaço de acesso à retrete que servia os passageiros de ambas as classes.
Enquanto o Pagador e o Chefe da Estação se despediam junto aos degraus do varandim da cauda da carruagem mista, o servente entrou e colocou a mala do dinheiro no meio do assento corrido existente ao fundo do salão de primeira classe.
Eram exactamente vinte e uma horas e dezanove minutos quando o Chefe apitou dando o sinal da partida. A E214 silvou e lentamente o 5423 iniciou a marcha em direcção a Chaves.
A rotina dos pagamentos aos trabalhadores da CP de há muito que estava regulamentada, entre os dias 6 e 13 de cada mês, os pagadores saíam para as diversas linhas da via larga em carruagens especiais e iam deixando ficar nas estações as importâncias correspondentes aos salários do pessoal que aí trabalhava. O trabalho do Pagador estava bastante facilitado, o dinheiro dos salários vinha dentro de envelopes já nominalmente destinados a cada agente e eram entregues ao chefe da estação, este limitava-se a fazer conferência dos valores e entregar um recibo ao pagador. Se a estação era importante e havia muita gente para receber, a carruagem ficava resguardada numa das linhas da estação e o pagamento era feito em terra, quando o pessoal não chegava à dezena, o pagamento era feito em trânsito aproveitando o tempo de paragem do comboio.
Nas linhas da via estreita não haviam carruagens especiais, o dinheiro dos salários era transportado numa mala em madeira tipo cofre, com reforço chapeada nas arestas e tinha uma fechadura de segredo.
De acordo com a calendarização oficial dos pagamentos para as linhas da região do Douro, na data certa, o pagador chegava à Régua no final da tarde e nesse mesmo dia fazia o pagamento. Pernoitava nesta estação e no dia seguinte, no primeiro comboio, seguia para Chaves afim de efectuar os pagamentos da Linha do Corgo. Pagava em trânsito até Vila Real e nesta estação fazia o pagamento em terra prosseguindo para Chaves na circulação seguinte. Era este o calendário oficial, no entanto, o pagador antecipava a ida à linha do Corgo seguindo no último comboio do dia em que chegava à Régua. Pagava em trânsito até Vila Real durante a noite e aí pernoitava, não só evitava assim levantar-se muito cedo no dia seguinte, como ainda conseguia regressar à Régua nesse mesmo dia.
O Pagador era sempre o mesmo e a alteração efectuada por este ao regulamento oficial que determinava os períodos de pagamento era já uma rotina de há muito tempo institucionalizada.

II

Envolvida pela nuvem branca do vapor que saía dos truques que accionavam os êmbolos das vielas, e com a chaminé a expelir de forma sincopada e intermitente o fumo escuro do carvão que ardia na fornalha, a locomotiva foi acelerando a marcha. Ainda a baixa velocidade passou a agulha que dava acesso à linha dois da via estreita e atravessou de forma oblíqua duas linhas de via larga, quando entrou na via algaliada acelerou mais um pouco e duzentos metros à frente ultrapassou a agulha limite da estação da Régua.
O largo da Ponte ficou para trás e a composição entrou numa zona semi-urbana, do lado esquerdo da linha algum casario marginava a estrada que seguia para as freguesias de Vilarinho e Canelas e do lado direito um grande vinhedo estendia-se desde o aterro subjacente à plataforma da via até quase ao rio.
Com um aceno ao condutor do furgão o Revisor largou com algum pesar a salamandra que aquecia este veículo ferroviário e pela chapa metálica que fazia de passadiço acedeu ao varandim da carruagem seguinte. Demorou-se alguns momentos a apreciar o reflexo da Lua nas águas do rio Douro, olhou a limpidez do Céu, que isento de qualquer nublosidade pronunciava uma forte geada, esfregou as mãos para reter algum do calor que trazia do furgão e abriu a porta de acesso ao salão de terceira classe.
Um casal com dois filhos ainda crianças sentava-se junto à porta do lado de trás do comboio e eram os únicos passageiros desta carruagem. Depois de perfurar os bilhetes, com um boa noite seco e apressado, o Revisor saiu e no momento exacto em que o comboio começou a circular na ponte sobre o rio Corgo, passou de um varandim para outro e entrou no salão de segunda classe da carruagem mista. Ao contrário da carruagem de terceira esta tinha aquecimento, por isso, a parte reservada a passageiros de segunda estava mais bem composta, alguns trabalhadores da CP ocupavam os lugares do topo do lado da máquina, quatro estudantes entretinham-se a jogar às cartas nos banco centrais do meio do salão e no banco corrido do fundo, um indivíduo deitado ao comprido e virado de frente para o encosto, procurava arranjar posição para dormir. Pressentindo a aproximação do Revisor levantou-se, e como que incomodado pela luz puxou para frente dos olhos o boné e do bolso do lado direito de um blusão de cabedal retirou o bilhete.
Com um gesto e sem qualquer palavra o Revisor solicitou do passageiro o bilhete, no automatismo característico do seu trabalho furou-o e sem se deter abriu a porta e entrou no pequeno compartimento que dava acesso à retrete e ao salão de primeira classe, desaparecendo da vista dos passageiros que tinha acabo de revisar.
Sensivelmente nesta altura o comboio parou na Bifurcação do Corgo, como à saída da ponte a via estreita deixa de estar algaliada pela via larga e é onde estão as oficinas de manutenção do material circulante, todos os comboios fazem uma paragem técnica de meio minuto, trata-se de uma estação com características especiais não servindo qualquer passageiro.
Depois do apito de partida do chefe desta estação e do silvo da locomotiva, com o comboio a acelerar para a velocidade 30 K/h, velocidade de cruzeiro da Linha do Corgo, o revisor reentrou no salão de segunda classe, passou pelo estreito corredor, saiu, atravessou a carruagem de terceira e entrou no furgão. Sorrindo para o condutor, puxou de um pequeno banco individual, colocou-o perto da salamandra e sentou-se com os cotovelos apoiados nos joelhos antevendo alguns minutos de calor e tranquilidade.

III

O matraquear regular das rodas nas juntas dos trilhos e o sincopado arrufar do fumo que se escapava da chaminé para a atmosfera, indiciavam que a locomotiva atacava com toda a força os carris como que avinhando que a esperava um longo e difícil percurso, parecia mesmo que a velocidade seria ligeiramente acima dos trinta quilómetros hora regulamentares.
Depois do revisor ter passado em direcção ao furgão, o passageiro do boné levantou-se, encostou-se à janela que antecedia a porta de comunicação com o salão de primeira classe e, com as mãos em concha para evitar os reflexos da iluminação da carruagem, procurou perscrutar a paisagem visível no negrume da noite.
A visibilidade não era grande, a Lua estava escondida pelo monte da Quinta do Valado e a sua sombra projectava uma mancha negra que quase chegava à margem direita do rio Corgo, ainda assim, dava para ver os bardos alinhados paralelamente à linha e o renque de choupos que ornavam as margens daquele rio. Mais ao longe, na outra margem, e cortada no aterro do monte, via-se a estrada que acompanhou a linha no seu percurso inicial praticamente sem qualquer movimento.
Com alguma lentidão, o passageiro do boné desencostou-se da janela e olhou em volta com um ar hesitante, abriu a porta de comunicação para o pequeno all de acesso à retrete e à carruagem de primeira lasse e entrou nesse espaço fechando atrás de si a porta.
Faltavam cerca de cinco minutos para o comboio chegar à estação de Alvações do Tanha, sentado a meio do banco corrido do fundo do salão de primeira, sozinho, o Pagador abriu a mala que ocupava os dois lugares em frente e retirou um envelope de média dimensão com o nome desta estação escrito em letras grandes. Com um pequeno corta papeis rasgou cuidadosamente o envelope pela sua parte superior e retirou outros cinco mais pequenos. Estes últimos estavam abertos e continham o dinheiro correspondente a outros tantos trabalhadores da pequena estação e o impresso discriminativo dos abonos e respectivos descontos. Alvações do Tanha era uma estação com pouco serviço, pouca venda de bilhetes e quase nenhum transporte de mercadorias, não tinha grande movimento, a intervenção que tinha em termos de segurança nos avisos que fazia à passagem de nível na estrada já referida era a razão de ser para o seu guarnecimento.
Com os envelopes na mão esquerda, o Pagador pousou o corta papeis no assento do seu lado direito e inclinou-se para a frente para fechar a mala. Quando a sua mão direita tocou a tampa da mala, ouviu a porta de comunicação com a parte detrás da carruagem abrir e fechar-se de imediato com uma pancada seca e forte. Com o gesto em suspenso olhou para ver quem era e encarou o passageiro do boné.
«Muito boa noite» foram as palavras que o Pagador ouviu.
Quando lhe ia retribuir, a visão de uma navalha de ponta e mola muito perto do seu pescoço fez-lhe morrer a resposta na garganta.
«Meta isso na mala e feche-a», falou-lhe o passageiro do boné com toda a calma.
O Pagador teve uma momentânea hesitação, mas perante o encosto da ponta da navalha ao seu pescoço apressou-se a cumprir a ordem recebida.
«Deite-se já no chão de cara para baixo».
Desta vez sem qualquer hesitação, o Pagador estendeu-se ao comprido no intervalo entre os assentos e ouviu a tampa da mala fechar-se com o estalido característico do fecho. Assustado, tapou mais ainda a cara e sentiu que o passageiro do boné se afastava em direcção à porta. Poucos segundos depois, com o abrir e fechar desta deu conta que o ladrão tinha saído.

IV

Já cá fora, no varandim da cauda da carruagem, o ladrão abriu a cancela de ferro e com a mala numa mão segurou-se ao varão de protecção e desceu para o último degrau. Debruçou-se, e aproveitando a luminosidade das janelas, espreitou para a frente do comboio procurando localizar o local onde o caminho de Covelinhas atravessava a via.
A estrada, que na parte inicial da Linha do Corgo a acompanha até às proximidades da ponte ferroviária, segue pela margem direita do rio mudando de margem três quilómetros mais à frente numa pequena ponte de pedra. A estrada continua para norte, e ainda muito perto da ponte, atravessa a linha numa passagem de nível guardada. Entretanto, mesmo à saída da ponte, do lado direito, há um caminho que segue para a freguesia de Covelinhas e serve algumas propriedades rurais, ainda que estreito e com o piso a terra batida permite o trânsito automóvel. O caminho sobe ligeiramente e poucos metros à frente também atravessa a linha, só que, desta vez, numa passagem de nível sem guarda.
O comboio fez uma curva muito apertada à esquerda e um alto muro de suporte indicou ao ladrão que o caminho para Covelinhas estava muito perto. No final do muro, um pequeno largo, anunciou-lhe o acesso ao atravessamento.
Quando o comboio se aproximava da passagem de nível que antecede a estação do Tanha, e a respectiva guarda mostrou à tripulação da máquina que a PN estava encerrada ao tráfego automóvel, no varandim traseiro da última carruagem, o ladrão atirou com a mala para o meio do largo e fixando o local onde esta parou, pendurou-se no varão deixando os pés tocar o solo. Ensaiou duas passadas largas em cima das pedras da linha e largou a mão do varão. Tentou superar a inércia da velocidade do comboio dando dois saltos, mas acabou por cair e rolar alguns metros. Levantou-se ainda meio tonto e, rapidamente, foi buscar a mala. Correu uma dezena de metros pelo caminho abaixo e entrou numa furgoneta fechada que estava estacionada do lado esquerdo do caminho e já virada para a estrada. Aproveitando a inclinação do piso deixou que a furgoneta descaísse, pôs o motor a trabalhar e entrou na estrada tomando a direcção da Régua. Nesta altura, o comboio acabava de ultrapassar a passagem de nível guardada e desaparecia numa curva à direita.
Depois do ladrão ter saído da carruagem o Pagador ainda se manteve alguns momentos sem se mexer, quando achou que talvez já não houvesse perigo em levantar-se, cautelosamente, foi-se soerguendo. Já de pé, olhou para a porta de saída, vendo que esta estava bem fechada, deu um salto e atabalhoadamente dirigiu-se para o salão de segunda classe.
Com um ar assustado, olhou para os passageiros e fixando o grupo de ferroviários sentados ao fundo gritou-lhes;
«Fui roubado…levaram-me a mala com o dinheiro»
«Como foi?»; interrogou um deles:
«Um tipo do boné apontou-me um navalha ao pescoço e levou a mala!»:
«E onde está ele?»; acrescentou um outro levantando-se de imediato;
«Deve estar no varandim à espera de chegar ao Tanha ou saltou em andamento»; respondeu já mais calmo;
«É melhor puxar já o sinal de alarme»; continuou aquele, e de imediato rodou uma pequena manivela fixada num suporte existente no topo da carruagem, mesmo por cima da sua cabeça.
O accionar do sinal de alarme provoca a paragem rápida do comboio, o sistema de frenagem a vácuo deste tipo de carruagem é desligado e com a entrada de ar na tubagem os cepos dos travões encostam-se de imediato às rodas.
Com um ruidoso chiar de ferro contra ferro, já com a estação do Tanha à vista, a composição imobilizou-se.

V

Quando o comboio parou completamente, o ferroviário que manobrou o sinal de alarme puxou o Pagador de lado e disse-lhe, «vamos lá atrás ver se o tipo ainda está visível».
Correram para o salão de primeira e rapidamente chegaram ao varandim da cauda. Não estava lá ninguém, e olhando até onde a luminosidade da noite permitia também não avistaram vivalma.
Os restantes de ferroviários do grupo saíram para o frio da noite pela porta do salão de segunda e amontoaram-se no estreito caminho que do lado esquerdo bordeja a linha, ao sentirem o pagador no varandim da cauda, dirigiram-se de imediato para o local e um deles perguntou sem se dirigir a ninguém em especial: «o revisor?».
Debruçado da entrada do furgão o Revisor procurava ver o que se passava, desceu, e apressadamente dirigiu-se ao ajuntamento onde foi posto ao corrente do roubo. Surpreendido pelos acontecimentos, disse: «A estação do Tanha está perto, vou telefonar já para a Régua».
O ferroviário que puxou o sinal de alarme retorquiu; «e nós agora vamos ficar aqui à espera sem fazer nada?»
Por momentos o silêncio foi a resposta, até que um dos outros ferroviários presentes disse com alguma firmeza: «como vamos ter que esperar podemos dar uma voltinha lá atrás, quem nos diz que o tipo não estará por aí escondido, somos muitos, não há que ter medo a uma navalha!»
Gerou-se alguma discussão à volta desta proposta, por fim, com o acordo de todos, enquanto o Revisor ia telefonar para informar a Estação da Régua do sucedido, resolveram refazer o percurso do comboio até ao local onde o ladrão poderia eventualmente ter saltado da composição.
Quando a notícia do assalto foi conhecida na estação alertaram a GNR e quinze minutos depois chegou o Comandante do Posto com duas Praças. Eram já aguardados por um Inspector, com um factor e um servente, prontos para partir num carro de aluguer.
Entretanto, o pessoal que tinha feito a batida já tinha regressado ao conforto da carruagem sem qualquer novidade. Toda a gente que vinha no comboio amontoava-se no salão de primeira, incluindo o Maquinista e o Fogueiro, trocavam impressões e recordavam casos e histórias semelhantes, ainda que muito fantasiadas. O Revisor e o Factor que fazia de Chefe na estação do Tanha também se tinham juntado ao grupo e, algo excitados, procuravam acalmar o desolado Pagador garantindo-lhe que tinha feito bem em preservar a sua integridade física, certamente que o ladrão seria apanhado.
Como não havia acesso rodoviário ao Tanha, o Comandante da GNR, o Inspector e os outros dois ferroviários da Estação da Régua seguiram ao longo da linha desde a Passagem de Nível até ao comboio, os dois Praças ficaram junto da viatura em vigilância.
Quando entraram na carruagem toda a gente se calou. Feitos os cumprimentos da praxe foi o Inspector que começou a fazer as primeiras inquirições, pediu ao Pagador que contasse em pormenor o desenrolar do assalto. Depois foi revisor que procurou dar-lhe uma ideia da fisionomia do Ladrão. A má iluminação da carruagem, a barba mal cortada e o boné puxado para cima dos olhos não lhe permitiram uma descrição muito rigorosa do indivíduo, aliás, mais tarde, já com o Comandante da GNR a conduzir o processo, todos quantos vinham no salão de segunda foram interrogados e os seus relatos pouco conclusivos.
Ambos registaram os depoimentos, e depois de toda a gente ouvida, definiram de forma muito vaga as características do ladrão, seria de estatura mediana, com uma cara larga e vestido de calças pretas de cotim com um blusão castanho.
As inquirições terminaram com a identificação de todos os passageiros e as respectivas moradas. O Comandante informou-os de que poderiam voltar a ser chamados para mais alguns esclarecimentos, se o ladrão fosse apanhado teriam que o identificar.
Como aquela hora já não valia a pena fazer nova batida, o Comandante do Posto da GNR deixou pendente para o dia seguinte uma inquirição ao bilheteiro, poderia ser que este se lembrasse do ladrão quando lhe vendeu bilhete.
Com quase três horas de atraso, o comboio retomou a marcha para Chaves. Como não havia dinheiro para pagar na Linha do Corgo o Pagador regressou à Régua no carro em que tinha vindo o Inspector.
contiua

VI

O relatório preliminar que o Comandante do Posto enviou via rádio na noite do assalto, accionou de imediata a vinda do Capitão que comandava o Batalhão de Vila Real. Chegou nessa madrugada e depois de inteirado de viva voz pelo seu subordinado dos acontecimentos, mandou convocar todos os passageiros para serem ouvidos formalmente daí a dois dias. Entretanto, apoiado por todas as Praças do Posto da Régua, comandou pessoalmente uma batida minuciosa a toda a área onde se previa ter o ladrão saltado da carruagem.
Ao mesmo tempo, e tal como estava previsto, no dia seguinte pela manhã foi ouvido o bilheteiro, não só pela GNR como também pelo Inspector da CP com vista ao inquérito interno da Empresa. Nada adiantou, ainda que tivesse vendido poucos bilhetes para a linha do Corgo só se lembrava de ter vendido bilhetes para uma família e lembrava-se porque quando lhos compraram juntaram-se todos em frente do Guiché da bilheteira.
Na Régua, o assalto ao comboio pagador foi o assunto do dia, não só no meio ferroviário como em toda a vila, os comentários fervilhavam e não faltava gente a apontar as pistas mais irrealistas. O posto da GNR foi inundado de informações, e ainda que muitas delas não tivessem consistência foram anotadas e objecto de registo no processo.
A batida terminou já da parte da tarde e limitou-se à constatação de que o assaltante fugiu do local num carro e tomou a direcção da Régua, as marcas das rodas no terreno eram muito claras e, a partir daí, nada mais se conseguiu.
O relatório formal do assalto ficou concluído já a noite ia alta, em face das suas características e das previsíveis dificuldades que a GNR teria nas investigações, o Capitão achou por bem solicitar a intervenção da Polícia Judiciária.
Quinze dias depois, com alguma frustração, um agente da Polícia Judiciária informou o Comandante do Posto da GNR que terminava as suas diligências e que se ia embora, ficaria a cargo deste a continuação das possíveis investigações para descobrir mais qualquer elemento que levasse as autoridades ao assaltante, pelo seu lado, nada mais tinha a fazer, a exploração das informações recolhidas estava esgotada e fora inconclusiva.
Passado um mês e quatro dias, exactamente no dia 4 de Fevereiro, uma Senhora Professora da Escola Primária número 1 da Régua que leccionava a quarta classe do ensino básico, recolheu dos seus alunos uma prova que consistia na redacção de uma carta que um filho em férias dirigia à mãe. Com excepção do selo, a carta teria que estar completa, o texto seria escrito numa folha de papel formal, metida num envelope e este com a direcção do correio de cada mãe devidamente escrito. Curiosamente, o envelope de um dos miúdos tinha o timbre da CP.
Como tinha recomendado que os envelopes deveriam ser exactamente iguais aos que se utilizam habitualmente na correspondência quotidiana, achou estranho o tipo de envelope entregue por aquele aluno, chamou o miúdo e perguntou-lhe porque razão não usou um envelope em branco. Para sua surpresa, o miúdo foi à saca e trouxe-lhe um maço com mais de uma dezena de envelopes iguais dizendo-lhe que ainda tinha outros tantos em casa, em vez de comprar um novo lembrou-se de utilizar aquele.
Conhecendo bem o seu aluno e a respectiva família, a Senhora Professora não conseguiu pensar numa razão lógica para o facto, não tinham familiares ligados aquela empresa e os envelopes eram demasiados para estarem na posse do miúdo por um acaso qualquer.
Sem saber bem porquê, quando foi almoçar telefonou para a estação da Régua, quando a ligaram com o Inspector informou-o de que um aluno seu, sem ligações familiares à CP, dispunha de uma quantidade exagerada de envelopes timbrados daquela empresa.
Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, o Comandante do Posto da GNR da Régua dirigiu-se à zona do Americano e prendeu um vendedor ambulante que possuía uma furgoneta branca. O indivíduo capturado era de estatura mediana, tinha cara larga e vestia umas calças de cotim preto e um blusão castanho. Não foi preciso chamar de imediato ninguém para o identificar, mal começou a ser apertado confessou ter feito o assalto.

 

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